Assemelhados ou Deformados

“Ora, o Senhor é o Espírito e onde está o Espírito do Senhor ali há liberdade. E todos nós, que com a face descoberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito.”  – 2 Coríntios 3:17-18

Transformação é a palavra. É o compromisso do Evangelho na vida em cujo coração sua verdade entra e permanece. É o programa de Deus com o homem que por viver longe da cruz, estava “vazio da glória de Deus”, e portanto deformado quanto ao plano divino original ao colocar nele a imagem e semelhança do Seu criador. Decaído, o ser humano passou a viver uma experiência de deformidades, na moral e na espiritualidade, revelada em seu comportamento, forma de ver e perceber a existência e o outro. Sem Deus no mundo, na linguagem de Paulo em Efésios 2:12. Mas, uma vez tendo nascido de novo, nascido do Espírito pela fé em Cristo e Sua obra, o Mesmo Espírito de Deus iniciou um programa de restauração a que a Palavra de Deus chama de transformação.

A transformação envolve todo o ser. Evidencia-se num crescendo contínuo no trato com a vida. Desde a afetividade até o colocar-se diante dos desafios existenciais. Minimamente traduz-se por mais presença divina na forma de ser humano. Mais sentimentos do céu, que longe de se agregarem aos afetos e desejos mundanos, substituem-nos, porque o apóstolo deixou claro em nosso texto: esta é uma operação que ocorre com o rosto descoberto, ou seja, longe da realidade do judaísmo antigo, na observância restrita da Lei, onde o rosto encoberto servia para esconder o que perdia força. Não. É com a cara limpa, sem hipocrisia, que vivemos e reagimos à transformação de natureza que se opera em nós.

Este é o processo: cada vez menos da natureza decaída, e cada vez mais natureza divina, a um só tempo correspondendo a duas figuras de linguagem de que se serve o apóstolo dos gentios: “Cristo em vós” e: “Bom perfume de Cristo”.

E onde se pode perceber esses “sintomas” de vida transformada, em primeiro plano? Seria numa postura litúrgica, ritualística, ou no uso da liberdade que a presença do Espírito traduz? Sim, nela. Evidenciando-se na vida pública, doméstica, cúltica e demais, denunciada pela aspirações elevadas que se revelam nas buscas pelo que é do Alto; na desistência do que não edifica; na linguagem que evidencia aquilo de que está cheio o coração, e este, antes de tudo, grato e adorador. Livre de artificialismos para se sentir e entender gente. Sem necessidade de outro “combustível” para existir, a não ser Cristo e Sua glória.

Vale lembrar um santo apelo: “Transformem-se pela renovação do seu entendimento” – Romanos 12:2.

A Natureza dos Homens do Reino

I Samuel 16: 14-23; 18: 8-12;19:8-9; 26: 7-12.

Onde reside o grande diferenciador entre os que pertencem a Deus e os que nada querem com Ele? A participação em cultos? Conhecer a Bíblia? A certeza de salvação? O evangeliquês?

Ou é uma questão mais interior, de natureza transformada?

A natureza humana é revelada pela personalidade de cada um. O coração é o grande diferencial, como diz Provérbios: “Do coração procedem as saídas  da vida”. Por isso Jesus disse que “a boca fala do que está cheio o coração.”

O Senhor delimitou a diferença estabelecendo-a na comparação entre duas naturezas: lobos e cordeiros. Eis o texto: Lucas 10:3 – “Vão! Eu os estou enviando como cordeiros entre lobos”.

Ou temos a natureza de cordeiros ou a de lobos. Jesus nos mandou aprender com Ele, o Cordeiro de Deus. Antes de enviar Seus discípulos, chamou-os para estarem com ele.

Quero ilustrar esse grande diferenciador com a história de Davi e Saul que nossos textos registram. Eles ilustram perfeitamente essa aguda diferença pelo fato de serem os dois duas pessoas escolhidas por Deus e revelarem suas diferenças habitando num mesmo ambiente.

Chama nossa atenção o fato de os dois serem guerreiros e valentes, mas um trazia em si a natureza de cordeiro e o outro, de lobo.

O diferenciador maior está no uso que fazem do que têm à mão em casa.  O cordeiro Daví carrega uma harpa, e a usa, tocando para amansar e aliviar.

O lobo Saul carrega uma lança e a usa para ferir, encravar na parede e matar.

E então começa um jogo de naturezas diferenciadas:

  1. O lobo quer armar o cordeiro. Este não consegue usar as armas daquele.
  2. Quando o lobo ataca com a lança, o cordeiro toca a harpa para amansá-lo.
  3. Se não consegue, foge, mas não devolve a lança. Por que? Porque cordeiros não entendem de lança, só lobos a usam; porque se devolver, vai rearmar o lobo.
  4. Por fim, tocando harpa e saindo de cena, o cordeiro consegue desarmar o lobo. 26: 7-12.

Preciso lembrar o que Deus disse a respeito deste cordeiro? É bastante ler Atos 13:22 – “Depois de rejeitar Saul, levantou-lhes Davi como rei, sobre quem testemunhou: ‘Encontrei Davi, filho de Jessé, homem segundo o meu coração; ele fará tudo o que for da minha vontade’.”

O que falam nossas mãos? O que carregam? Harpa ou lança? Dessa diferença depende saber a natureza que nos mobiliza: cordeiros ou lobos. Nunca é tarde para depormos nossas armas, mudarmos de instrumentos, e afinar nossas harpas pelo Espírito Santo de Deus.

Nossa história mostra que a diferença básica entre Davi e Saul é que Deus era com Davi, e em Saul operava um “espírito arruinador” ou maligno. A Bíblia afirma que nós temos o Espírito de Cristo. Devemos viver guiados por Ele, sob Seu domínio e controle, filhos do Cordeiro.

Um recado, a propósito: Nestes dias de tanto embate político desde as últimas eleições, tenho visto pastores e crentes outros, aferrados numa luta renhida partidária e ideológica, dispersando lanças, mais que farpas, de ambos os polos, revelando uma natureza que de cordeiro nada tem. Deplorável!

Liturgia de Servo | Atos de Discípulos (12)

Naqueles dias, crescendo o número de discípulos, os judeus de fala grega entre eles queixaram-se dos judeus de fala hebraica, porque suas viúvas estavam sendo esquecidas na distribuição diária de alimento. Por isso os Doze reuniram todos os discípulos e disseram: “Não é certo negligenciarmos o ministério da palavra de Deus, a fim de servir às mesas. Irmãos, escolham entre vocês sete homens de bom testemunho, cheios do Espírito e de sabedoria. Passaremos a eles essa tarefa e nos dedicaremos à oração e ao ministério da palavra”. Tal proposta agradou a todos. Então escolheram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, além de Filipe, Prócoro, Nicanor, Timom, Pármenas e Nicolau, um convertido ao judaísmo, proveniente de Antioquia. Apresentaram esses homens aos apóstolos, os quais oraram e lhes impuseram as mãos. Assim, a palavra de Deus se espalhava. Crescia rapidamente o número de discípulos em Jerusalém; também um grande número de sacerdotes obedecia à fé.” – Atos 6:1-7

Estêvão, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timon, Pármenas, Nicolau. Sete homens, para prestar serviço de assistência social a mais de cinco mil pessoas. Muito mais. Inauguraram o que padronizou-se e tradicionalizou-se nas igrejas no passar dos séculos, como diaconia, ou corpo de diáconos. Paulo mesmo, quando organizava as igrejas por ele inauguradas onde passava, preocupava-se a dar seguras orientações quanto a esse ministério que não podia faltar na igreja estabelecida.

Hoje encontramos igrejas com menos de duzentos participantes, no entorno de  um corpo diaconal formado muitas vezes por uma dezena de diáconos. Penso na objetividade do serviço na igreja de Jerusalém, fazendo inevitável comparação. Milhares de pessoas assistidas em suas necessidades diárias por sete homens apenas? Eles davam conta? Era bastante? O serviço era pouco? (Entre milhares…). O texto expõe que o trabalho deles era servir às mesas (está no plural) e para suprir as famílias em suas necessidades básicas. Diariamente.

Mas o que me chama a atenção é o critério adotado para eleger esses sete. E o fato de que dentre eles, dois sobressaíram e fizeram história na igreja através de seus testemunhos: Estêvão e Filipe.

A escolha seria feita pelo povo debaixo de um processo dedutivo de observação. Seria necessário nomear alguns (quantos? Eles delimitaram, e por isso o fruto da

observação resultou em sete nomes, apenas). E o que deveriam observar? Que para servir no corpo de Cristo, os homens só poderiam ser escolhidos dentre os que apresentassem este trinômio de virtudes: bom testemunho, cheios do Espírito e de sabedoria. Não bastava bom testemunho? Não. Impossível dar bom testemunho sem estar cheio do Espírito Santo, pois Jesus havia dito (Atos 1:8)  que para ser testemunha era necessário estar cheio do Espírito. Outro tanto, estar cheio do Espírito precisa estar cingido à sabedoria, porque o poder espiritual desprovido dela, transforma o carisma em mau caráter. E falta de sabedoria jamais atesta bom testemunho, logo o trinômio era um cordão de três dobras indissociáveis.

Isso tudo para servir às mesas. Penso no que a Igreja deveria esperar dos que para além destes, tinham de manter o encargo do “ministério da Palavra de Deus!” Penso comigo, com temor e sem sarcasmo, apenas compartilhando um pensamento, que se as igrejas desta geração pudessem guarnecer-se de ministradores da Palavra sob tais critérios, que tipo de diaconia elas teriam? Porque a mim parece que os valores para a liturgia foram estabelecidos nesta ordem: a partir daqueles para esses.

E que diáconos! Um morre como mártir, vendo o céu se abrir e contemplando ali o Senhor Jesus! O outro é visto tempos depois, sendo levado pelo Espírito de Deus como instrumento de um grande avivamento na cidade de Samaria, e em seguida descendo até Gaza onde batiza um ministro do governo da Etiópia. Imagino um homem desses em nossos púlpitos. Imagino os que por ele foram servidos às mesas, na comunidade de Jerusalém, que talvez sequer se apercebessem que naquele ofício simples de distribuir víveres, estava o embrião de um evangelista a quem Deus usaria para fazer… o quê?: Servir no ministério da Palavra de Deus.

Em resumo, penso com meus botões, que, o critério de escolha tinha de ser de tal quilate, porque tanto quanto nos ministrantes da Palavra estava a verve do servir, quanto no serviço diaconal estava a verve do ministrar a Palavra. Porque Deus vê os serviços no mesmo nível. É liturgia, serviço ao Corpo de Cristo. Porque o Espírito é o Mesmo. Quem muda é o homem.

Deus “Tateado” | Atos De Discípulos (11)

O Deus que fez o mundo e tudo o que nele há é o Senhor dos céus e da terra e não habita em santuários feitos por mãos humanas. Ele não é servido por mãos de homens, como se necessitasse de algo, porque ele mesmo dá a todos a vida, o fôlego e as demais coisas. De um só fez ele todos os povos, para que povoassem toda a terra, tendo determinado os tempos anteriormente estabelecidos e os lugares exatos em que deveriam habitar. Deus fez isso para que os homens o buscassem e talvez, tateando, pudessem encontrá-lo, embora não esteja longe de cada um de nós. ‘Pois nele vivemos, nos movemos e existimos’, como disseram alguns dos poetas de vocês: ‘Também somos descendência dele’. “Assim, visto que somos descendência de Deus, não devemos pensar que a Divindade é semelhante a uma escultura de ouro, prata ou pedra, feita pela arte e imaginação do homem. No passado Deus não levou em conta essa ignorância, mas agora ordena que todos, em todo lugar, se arrependam. Pois estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio do homem que designou. E deu  provas disso a todos, ressuscitando-o dentre os mortos”. – Atos 17:24-31

Este extraordinário discurso de Paulo no areópago de Atenas tem o valor de um credo, uma bula confessional. Há nele uma boa quantidade de assertivas, que revela a natureza e o propósito do Deus Eterno, capaz de admirar qualquer inquiridor sincero das coisas espirituais. Deter-nos sobre cada uma é atraente,  mas tarefa que exige muito espaço. Uma, no entanto, merece um destaque especial pelo que traz de incomum. Repare: “Deus fez isso para que os homens o buscassem e talvez, tateando, pudessem encontrá-lo, embora não esteja longe de cada um de nós”. Primeiro, importa salientar a que ele se refere por “Deus fez isso”. Ele afirmou: Deus fez o mundo e todos os povos a partir de um só, tendo determinado tempo e lugares exatos em que deveriam habitar. E então, depois de dizer o que Deus fez, afirma por que o fez: para que esses homens O buscassem. E nos surpreende com a sentença: “talvez, tateando, pudessem encontrá-Lo…”

Ora, importa considerar que o apóstolo não está afirmando que Deus possa ser encontrado por meio de um apalpar, tatear, como quem anda em trevas e não consegue ver o que procura. Pois afirma categoricamente que Deus está perto, à mão, para ser achado por quem O busque. O “talvez” ou “ainda que”, de que se serve o apóstolo, tem por finalidade que os buscadores de Deus podem ter tal pretensão, mas o Deus Eterno está acessível, não brinca de “esconde-esconde”.

É o homem, como aqueles curiosos filósofos de Atenas, quem opta por tatear, para estabelecer uma busca em seus próprios termos. Sabemos que o Deus Eterno nos enviou Seu Filho como o Caminho, e a Porta de livre acesso à Sua presença e glória. Mas em geral as pessoas preferem criar atalhos. Um adágio popular assume que “todos os caminhos levam a Roma”, para significar também que “todas as religiões levam a Deus”. Atalhos não aproximam ninguém de Deus. Antes afastam.

Por conta disso, destaco um fato histórico de uma buscadora, nos dias de Cristo que pretendeu se aproximar Dele, tateando. É a história narrada nos três primeiros evangelhos, a respeito da mulher que sofria havia doze anos, de uma hemorragia que nenhum médico curava. A narrativa do evangelho de Marcos diz que ela ouviu falar de Jesus, e decidiu que podia chegar até Ele, tocá-Lo, ser curada, e fazer tudo isso ocultamente, sem se expor. Decide que vai chegar por detrás Dele, tocar na orla de Suas vestes, lá nas franjas, abaixadinha, para não ser percebida. Tanto que o fez, e pensou ter saído incógnita. Ninguém a viu aproximar-se. Ela literalmente tateou até encostar em Sua roupa. Não tocou em nenhuma parte do Seu corpo. Na roupa, e no extremo dela. Mas isso foi suficiente para que Ele dissesse: “Alguém me tocou”. O que nos surpreende é que tal afirmação foi precedida de uma pergunta: “Quem me tocou?” O texto continua e afirma que a mulher ao ver que não podia manter-se escondida, se expôs. Ora, o Jesus que aqui pergunta “Quem?”, é o mesmo que diz a Natanael quando o encontra: “Eis aí um israelita sem dolo” e quando o moço se espanta perguntando: “De onde me conheces?” Como quem diz: “Nunca nos vimos antes”, Jesus o surpreende dizendo: “Antes que Felipe te achasse, eu te vi debaixo da figueira”.  É  este mesmo Jesus com tal poder onisciente, que agora questiona: “Quem me tocou?”. Somos de imediato levados a comparar esta cena com aquela dos primórdios, após a queda de Adão , em que o Deus Onisciente lhe pergunta: “Onde estás?”. Nosso conhecimento dos atributos divinos não nos permite ver conteúdo real para esta questão. Ela pretende provocar uma resposta. A mesma coisa se passa entre Jesus e aquela senhora enferma. Ele a força a expor-se, e feito isto, aproximar-Se. E mais: a partir do momento em que ela se apresenta, expõe-se, Ele tanto Se aproxima quanto a aproxima de Si, ao chamá-la carinhosamente de “filha”. Este é um termo raro no trato de Jesus com os Seus.

Este fato histórico ilustra para nós, minimamente, quanto é verdadeira a afirmação de Paulo de que o Senhor está perto dos que O buscam, mas os quer procurando-O abertamente, sem subterfúgios, sem terceirizar a busca, fora de seus termos racionais, mas segundo Seus meios revelacionais. Daí Ele não ter

deixado aquela mulher sair, levando sua cura, sob o risco de fundar uma nova  seita que apregoasse a possibilidade de achá-Lo e segui-Lo pelo tato, às apalpadelas, segundo seu imaginário ditando meios à força das necessidades, de forma a pretender que bastaria chegar escondida, tocar em uma relíquia que O represente, e sair incógnito, sem nenhum envolvimento pessoal e direto. Não. O Filho de Deus queria revelar àquela mulher que não basta chegar perto e se servir, e sair satisfeita com o resultado de suas tentativas de aproximação. Ele revelou  por fim, que Quem quer tocá-Lo deve vê-Lo de frente, expor-se, porque Seu propósito é fazer dos buscadores filhos diletos, numa relação pessoal e aberta  com Ele, onde se possa dizer, muito mais que “se tão somente eu tocar em Sua veste”, um “Aqui estou. Sou eu. Eu mesmo, que te busco e quero ser visto por Ti”. Sem tatear, mas diretamente, diálogo aberto e franco. Face a face, usando a mesma fé para dizer sem medo: Preciso de Ti.

Por fim, aprendemos que quem pretenda se achegar tocando naquilo que O representa, apenas tateia. Limita-se a ser visto por Ele como um pronome:  “quem”; “alguém”. Mas os que O buscam abertamente e a Ele se expõem, são surpreendidos por uma solene declaração: “Filho!”