A Voz que Opera por Dentro | Atos De Discípulos (7)

Depois de orarem, tremeu o lugar em que estavam reunidos; todos ficaram cheios do Espírito Santo e anunciavam corajosamente a palavra de Deus. Da multidão dos que creram, uma era a mente e um o coração. Ninguém considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas compartilhavam tudo o que tinham. Com grande poder os apóstolos continuavam a testemunhar da ressurreição do Senhor Jesus, e grandiosa graça estava sobre todos eles. Não havia pessoas necessitadas entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o colocavam aos pés dos apóstolos, que o distribuíam segundo a necessidade de cada um.”- Atos 4:31-35.

Todos os que pretendem estabelecer pontos doutrinários ou dogmas sobre o texto de Atos dos Apóstolos (que não tem esse propósito), confundem-se ou cometem erros sérios. O livro tem o compromisso de ser um documento histórico, narrando a vida da igreja nos seus primeiros dias a partir de sua manifestação visível no contexto da sociedade da época. Por isso quando lemos textos como este acima, nós, militantes da Igreja de Cristo desta geração, sentimos uma sensação de vazio, de perda de posição no exercício da vida cristã em comunidade, porque nos comparamos ao comportamento daqueles irmãos e percebemos como estamos defasados não só da realização quanto da possibilidade dela em nosso contexto moderno. Por conta disso, houve alguns, e ainda os há, que tiveram a pretensão de reproduzir essa realidade da koinonia aqui descrita, tentando criar um equivalente a comunismo eclesiástico, ao qual deram nomes pomposos, sobre o que escreveram livros volumosos, em princípio atraentes, para provarem no fim das contas que o que faziam não passou de utopia desnecessária. E o fizeram com escopo doutrinário.

O equívoco se deu na forma, na tentativa de copiar a forma, que distante de nós no tempo, tornou-se inviável na práxis da igreja que explodiu em multidões confinadas em suntuosos espaços de culto, alguns reputados por catedrais, onde a prática evangélica assumiu um caráter piedoso, tipo sócio-cultural-religioso. Mas eficaz ainda, em sua proposta kerigmática. Tentar copiar aquela forma é minimamente infantil, e forçá-la é incorrer no falso, fora do texto que diz: “Não por força nem por violência, mas pelo Meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos”. A forma só se aplicava àqueles dias, e ainda à comunidade de discípulos que se organizou em Jerusalém.

A partir da diáspora dos discípulos, não mais; porque desnecessária se tornou a forma, mas eles levaram e semearam a sua essência. É bastante ler as cartas de Paulo, em especial a de I Coríntios capítulo 11, para constatar que a igreja passou a se reunir em casas diversas, ou como em Éfeso e em Corinto, em lugar reservado com dia marcado. Em Jerusalém eles ficaram por ali mesmo. Mudaram radicalmente sua situação social, movidos pela esperança de uma parousia iminente, mas o preço que pagaram, produziu a essência da unidade que Paulo depois exortou aos crentes de Éfeso e de Filipos, que deveria ser perseguida e mantida: “Façam todo o esforço para conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz.” – Efésios 4:3; “Se por estarmos em Cristo nós temos alguma motivação, alguma exortação de amor, alguma comunhão no Espírito, alguma profunda afeição e compaixão, completem a minha alegria, tendo o mesmo modo de pensar, o mesmo amor, um só espírito e uma só atitude.”- Filipenses 2:1-2.

A unidade espiritual, tão propalada por Paulo em Efésios 4, e aqui em Filipenses bem detalhada, é a essência daquilo cuja forma atrai e tanto faz pensar aos crentes sinceros que observam questionáveis, comparando, a prática da igreja de Jerusalém dos primeiros dias. Jesus repetidamente a suplicou ao Pai quando orou pela igreja que se formaria a partir dos Seus discípulos: “Que todos sejam um”; “que sejam perfeitos em unidade”. Deixou claro que esse seria um eloquente testemunho da fé nEle, no coração crente, dizendo em João 17 que nessa unidade da igreja todos saberiam que Ele, o Senhor, tinha sido enviado pelo Pai (v.23).

Unidade não é ajuntamento, forma. Não representa nem se deixa representar por multidões em ajuntamento político-religioso fazendo marchas ou gritando palavras de ordem, nosso conhecido evangeliquês, pelas ruas. A começar pelo fato de que por unidade não devemos entender proximidade física, localidade. A unidade só pode ocorrer, e continua a sê-la a despeito de distâncias geográficas (pensemos em missionários em campos distantes, cobertos pela oração e sustento de suas igrejas mantenedoras) quando se traduz nas demais manifestações essenciais apontadas pelo apóstolo, como vimos no texto acima: “mesmo modo de pensar, mesmo amor, um só espírito e uma só atitude”, e deixa claro que isso só é possível se “estivermos em Cristo e isso for para nós motivação, exortação de amor, comunhão no Espírito, profunda afeição e compaixão”.

É interessante notar no texto histórico, que a narrativa de Lucas quanto a essa unidade da igreja que se revelou tão explícita e factual, foi colocada entre algumas expressões superlativas: “cheios do Espírito Santo” eles pregavam, e o que isso produzia era “da multidão dos que creram, uma só mente e um só coração”. E continua com os superlativos: “Com grande poder os apóstolos continuavam a testemunhar” e “grandiosa graça estava sobre todos eles”. O agir do Espírito de Deus, o lugar dado a Ele na práxis da fé, criava tais resultados, a essência que se manifestava em unidade, que por ser profunda e tão real, resulta em familiaridades, envolvimentos, entregas voluntárias e interrelacionamento intenso, cuja forma visível é só confirmação externa, consequente, do que está sendo operado por dentro.

Não se produz unidade com agendas e programas. Ou há lugar e busca do Espírito de Deus para que Ele o faça, ou o resultado é um arremedo que exige um esforço tremendo, e via de regra inócuo da parte de líderes, que o melhor que podem produzir é ajuntamento temporário e temático, sem vida longa, ou com um curto fôlego, do tamanho do entusiasmo de um momento. Mas se o Espírito de Deus age na igreja, Ele produz a unidade que vem do Alto (do contrário Jesus não a teria pedido ao Pai). Sem dúvida que, à luz das exortações paulinas, devemos entender que há um imbricamento de causa e resultado, ou uma vivência espiritual retro-alimentadora, onde a consciência da necessidade de unidade gera uma busca, diretamente ao Espírito de Deus, que encontrando corações dispostos, a produz e a mantém. Quando percebo que cristãos sinceros e operosos vivem inclinados a reconhecer e amar seus irmãos em Cristo, aí discirno o gérmen da unidade espiritual que viabiliza um testemunho eficaz, fazendo da prática da vida da igreja a verdade anunciada por Salomão: “Há amigo mais que chegado que irmão”, para dizer, num paradoxo, que para além de laços consanguíneos (o irmão aqui descrito) há irmãos na fé a quem podemos amar mais intensamente, mais achegados, mais próximos, mais entregues, porque em sua essência, preservam a mesma mente e o mesmo coração, ainda que nunca tenham sido aparentados entre si.