Desejo, Necessidade e Sonho

“Deleite-se no Senhor, e ele atenderá aos desejos do seu coração.” – Salmos 37:4

Muita gente boa se atrapalha com este texto. Num primeiro momento ele é altamente atraente à fé. Em seguida transita pelo terreno da insatisfação ou frustração. E quase que, movidos à força de “justificar” a Promessa que não pode falhar, damos lugar ao questionamento do tipo: “Meu desejo não deve estar de acordo com a vontade de Deus”, e isso parece explicar tudo. Mas não resolve o problema da frustração. Sim, porque dada a força do texto, ele atrai por sua proposta. Então alguns outros, pesando com mais seriedade o texto, partem para a hipótese de que, ao apresentar uma condição, ele faz o desejo perder “validade” se a condição não for cumprida. Então resta uma última situação: o que seria o deleitar-se no Senhor, a “condição” proposta? Eu a chamaria de conselho. Mas, como se faz isso?

Permitam-me dividir um pensamento, longe da pretensão de ter a chave da resposta. Se partirmos da intenção de ter o nosso desejo atendido e para isso “devemos” nos deleitar no Senhor, esta premissa, (deleitar-se), já se secundariza imediatamente e perde a razão de ser.

Desdobremos esses pensamentos (meus pensamentos): Deus sabe que o ser humano é um recipiente de desejos. Nossa estrutura psíquica é um “corpo” formado por desejos e a partir dela muitos de nossos comportamentos são ditados. Se houver uma baixa em nosso “arsenal” de desejos, toda a nossa estrutura esmorece. O ser humano começa a morrer não por ter seus desejos frustrados, mas quando para de desejar. Quanto por mais tempo frustrado for o nosso desejo, mais luta ele mobilizará, mais energia psíquica, que conhecemos como motivação emocional e intelectiva. Os desejos facilmente consecutáveis, ou são fracos em sua elaboração, apequenados (o que não é indicativo de humildade, assim como desejos intensos não são sinônimo de ambição) ou produzem muito pouco em termos de elaboração existencial. Os grandes desejos (fortes) têm o poder de motivar terceiros, projetam-se para além do ego elaborador. Por isso, Deus não só atenta aos nossos desejos, quanto os motiva, espicaça. Por exemplo: “Buscar-me-eis e me achareis, quando me buscardes de todo o vosso coração. E eu me deixarei achar por vós…”(Jeremias 29: 13 e 14). Eis aí Ele inspirando o desejo. E isso já responde boa parte do significado do “deleitar-se, agradar-se do Senhor”. Mas, quanto a este último aspecto, ele assume o lugar de fonte para o desejo. Deleitar-se em Deus não tem compromisso com cultuar ou assumir rituais. Antes indica ter na Pessoa dEle a razão do prazer, como quem se inclina afetivamente a um cônjuge ou filhos. E segundo Sua Palavra, priorizando para Ele o afeto. Evidente que isso é produto de um cultivo, uma disciplina pessoal, que homens e mulheres de Deus ao longo da história da Igreja nos ensinaram por sua vida de oração, comunhão com o Deus Eterno.

Acontece que a maioria de nós confunde desejo com necessidade, e isso se torna um laço. A necessidade pode gerar o desejo, e isso é sadio, porque faz desse desejo um construto legítimo. Mas o desejo não pode ser convertido em necessidade, o que é uma artimanha de nossa mente contra nós mesmos (lembram Eva diante do fruto proibido?) pois isso se torna uma obsessão que nos assedia, prioriza-se e nos insensibiliza quanto aos limites do direito e da honra, leva-nos a pecar. Há muito de impulsos de nossa natureza primitiva ditando nossos desejos. A origem natural deles é animal, daí o Espírito de Deus nos aconselhar a mudar a fonte, de nós mesmos para Deus (“agrada-te do Senhor”). Portanto, a necessidade deve preceder o desejo. E onde reside a diferença? O desejo pode ser substituído, anulado, sublimado e coibido. A necessidade não. Por mais que esperneemos frustrados como crianças pirracentas quando nosso desejo é impedido ou frustrado, podemos substituí-lo ou prescindir de sua satisfação sem sofrermos danos por isso. Não confundamos: precisamos desejar sempre, mas nem sempre ter os desejos satisfeitos nem na forma nem na dimensão por que se apresentam. Mas a necessidade precisa sempre ser suprida, porque ela tem a ver com existência intelectual, física, moral e espiritual. O desejo é sempre animal, mas a necessidade é integral, envolve o ser humano em todas as dimensões do seu ser. A questão maior reside na dificuldade que trazemos em discernir desejo e necessidade, conforme já apontamos, tendentes que somos a fazer do desejo uma necessidade.

A necessidade, por sua vez, se não suprida, não produz desejo e isso pode aniquilar, diminuir, adoecer. A necessidade produz o desejo que engendra os sonhos, a capacidade de imaginar, criar e alimentar a esperança. A necessidade tem um compromisso com a esperança, e nada é mais saudável e espiritual que a esperança.

Voltando à força do texto, a palavra hebraica vertida para nós como desejo, tem compromisso maior com petição. Você pode traduzir seguramente o versículo mudando os substantivos nestes termos: “Agrada-te do Senhor (busque ter Nele o seu prazer) e ele atenderá ao pedido do seu coração”. Porque esse “pedido” é a necessidade transformada em desejo, e com certeza teve em Deus sua inspiração.

Para não confundir: o desejo grande não é ambição. Quando o desejo é muito grande, ele se converte em sonho, com risco de virar utopia. Mas só é sadio se for produzido pela necessidade. Mas se desejamos o que pertence a outro, isso nunca chegará a ser necessidade, e sim, cobiça.

Os desejos engendrados na comunhão com Deus, passam pelo trilho da perseverança em oração que repousa sobre os dormentes da paciência, fixados pelos pregos da esperança. E voltam para Deus, em Quem são satisfeitos.