Avante!

Interpretando coisas espirituais para os que são espirituais… I Co. 2:13.

AVANTE!

Sempre admirei o trabalho de tradução das Escrituras feito por André Chouraqui, um judeu erudito que viveu 90 anos ao longo do século XX e fez uma tradução única e ousada tanto do Velho quanto do Novo Testamento. O que admira em sua obra é sua insistência em nos levar ao sentido mais primitivo possível do significado original das expressões e ideias vertidas em palavras nos textos das Escrituras, e assim fazendo ele nos surpreende muitas vezes, desenterrando pérolas encobertas pelo pó de muitas interpretações textuais comforos de tradução.

Por conta disso, esbarramos com sua reescrita das bem-aventuranças proferidas por Jesus. Segundo o tradutor, o termo “felizes” ou “bem-aventurados”, que traduz o grego “makarioi”, é uma tradução que desvia-se para longe do sentido original da palavra empregada por Jesus em aramaico, e outro tanto se afasta do seu propósito. Conforme o autor citado, a Septuaginta, que traduziu para o grego os textos hebraicos e aramaicos do Velho Testamento, tradução de que se serviram os escritores do Novo Testamento, teria ela traduzido de forma inadequada a palavra “ashirei”, que começa o salmo 1 e o salmo 119, e que foi usada por Jesus. Tendo eles traduzido “ashirei” por “felizes ou bem-aventurados”, influenciaram os tradutores do termo usado em aramaico por Jesus, dando-lhe este significado.

Com muita propriedade, André Chouraqui alerta para o fato de que Jesus seria cruel ao pretender que Seus seguidores se fizessem a si mesmos “felizes” ou se colocassem “felizes” por caminhar neste mundo como “pobres de espírito”, ou “mansos”, ou “famintos e sedentos de justiça”, ou “pacificadores”, etc. Salienta o tradutor que o que se pretende como bem-aventurança para o início de nossa marcha no mundo como discípulos de Jesus, é na verdade, a recompensa final, porque o sentido de “ashirei”, o vocábulo plural, é “os que avançam”, e que o fazem corajosamente, com ânimo e disposição. Usado no imperativo resulta em “avante!”, como um brado de estímulo, incentivador, motivando a marcha na vida, pela fé, em direção ao Reino dos céus. Assim sendo, em lugar de comunicar “felizes os humildes de espírito”, o que Jesus disse foi: “Avante, os que são humildes de espírito, porque deles é o Reino dos céus”. Logo, a felicidade reside no fim da carreira, e não como um sentimento de que teriam de prover-se os discípulos para avançar. Não só Chouraqui traduz “bem-aventurados” por “avante”, ou “marchem”, como também traduz o mais próximo do sentido original, cada uma das sentenças enunciadas pelo Senhor. O texto final, que aqui adaptamos, fica assim:

“Avante (em marcha!), humilhados do sopro (Espírito), sim, deles é o reino dos céus!

Avante (em marcha!), os enlutados! Sim, eles serão reconfortados!

Avante, os humildes! Sim, eles herdarão a terra!

Avante, os famintos e os sedentos de justiça! Sim, eles serão saciados!

Avante, os matriciais (os que servem de útero acolhedor)! Sim, eles serão matriciados (encontrarão úteros acolhedores)!

Avante, os puros de coração! Sim, eles verão a Deus!

Avante, os pacificadores! Sim, eles serão chamados filhos de Deus!

Avante, os perseguidos por causa da justiça! Sim, deles é o reino dos céus!”

Ora, considerando que ao discípulo do Senhor é dado caminhar na estrada da vida em direção ao Reino, e que essa estrada está num terreno que lhe é hostil, não se pode pretender que esse discípulo encontre em si sentimento ou sensação de bem-aventurança que lhe seja por motivação a ir em frente, ao mesmo tempo em que se poderia desculpar quanto a não avançar ou recuar face a ausência de tal sentimento. Mas o que lhe é dito é que avance, tal como é, recorrendo à fé que a Graça opera, para que chegue corajosamente ao fim, e desfrute o prazer e as glórias de ser vencedor na jornada. Isto fica ainda mais claro quando se percebe que Jesus não insinuou que teríamos de ser “humildes de espírito” para avançar. Mas assegurou que devemos avançar porque somos humildes de espírito, ou seja, só o homem ou mulher que tem em si as características próprias àquele que é nascido do Alto, nascido de novo, pode avançar “correndo a carreira que lhe está proposta”.

Você é discípulo(a) do Senhor? Diante de você há todo um ano de carreira a percorrer. Pela fé, olhando para Aquele que o(a) encoraja, Autor e Consumador da fé, vá em frente.

Avante! O Senhor é consigo!

Deserto Solitário e Solidário

Desde então começou Jesus a pregar, e a dizer: Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus”. – Mateus 4:17.

Este versículo marca o momento inicial do ministério do Filho de Deus, logo após Ele se haver instalado em Cafarnaum, o que foi precedido por uma peregrinação de quarenta dias pelo deserto. Por sua vez, este deserto, palco de um tempo incomum de tribulação perpetrada pelo seu adversário, Satanás, tinha sido precedido por um espetáculo incomum de glória e exaltação, quando da confirmação de Sua filiação divina unigênita, através de uma voz que reverberou nas margens do Jordão desde o céu.

Entre o momento de glória e revestimento e o início do serviço, instalou-se um deserto de tentação sem igual.

Esse intervalo de quarenta dias de provação, repetia figuradamente outro intervalo ocorrido entre o chamado e a realização deste a um outro filho: Israel povo, que peregrinou pelo deserto quarenta dias transformados em anos correspondentes. O paralelo é interessante, pois que os dois desertos atenderam a movimentos e ocorrências assemelhados: testes de genuinidade de escolha e chamado divinos, em meio a fome e sede, caminhada errante e tudo induzido pelo próprio Deus que chamou. Manifestações tanto malígnas quanto angélicas. Ao povo foi dito: “É meu povo”, e a tentação pôs tal certeza em cheque. Ao Filho foi dito: “Tu és meu Filho”, e o tentador atacou exatamente esta certeza.

Os dois desertos foram precedidos de um chamado visível, convincente, marcado por sinais. Nos dois chamados havia o testemunho divino de legitimidade: a Israel, como povo de Deus, ungido. A Jesus, como o ungido Filho de Deus. As duas tentações puseram em cheque essas certezas e garantias. O término de cada uma redundou em início de uma etapa definitiva que cumpria a razão do chamado recebido.

Mas o interregno era solidão.

Houve presença de glória no momento inaugural. Mas deserto e solidão no campo de preparação para o serviço.

Israel e Jesus parecem sinalar para nós um padrão de ação divina quanto àqueles que Ele chama. Seja para integrar Seu povo, seja para realização de um ministério solo, específico.

Há a marca indelével da eleição, às vezes verdadeira teofania, mas a ela sucede uma peregrinação de silêncio, provas e testes, onde a solidão parece só não ser mais devido a “estranhas presenças” e consequentes ocorrências. Contudo a nota de destaque é a solidão. Esta terá de ser uma constante na vida dos que caminham com Deus. Às vezes achados a sós em meio a tantos.

Surgem anjos ajudadores, para animar e alimentar, vertidos em amigos e irmãos, quando s testes são vencidos. Sempre.

Por fim, tudo pronto? Não! É hora de começar aquilo para que se foi chamado. E tal começo, terá sempre característica de começo. Sempre haverá a sensação de que tudo é um início, de que sempre somos iniciantes na Grande Jornada.

Penso que chamados desprovidos dessas características deixarão sobre incertezas sobre sua fonte. Nosso Deus não muda.

Não Posso Descer

…Estou executando um grande projeto e não posso descer. Por que parar a obra para ir encontrar-me com vocês?” – Neemias 6:3.

Caminhar a trilha traçada por Deus nem sempre segue nos trilhos dos homens.Não forma paralelos, maioria das vezes. Vez por outra, senão uma elipse, uma intersecção.

Às vezes Jesus tinha de assumir afastar-se de todos e ficar a sós, com o Pai. Eram momentos nos quais e para os quais não cabia humana companhia.

Certa vez Neemias precisou recusar-se ao convite de se reunir com alguns dignatários, porque estava “fazendo grande obra” e por causa dela, não podia aquiescer a propostas outras, menores, ainda que aos olhos de seus interlocutores, importantes e prioritárias.

Descer do muro, parar a obra e estar junto aos outros, seria para Neemias a diferença entre a vida e a morte.

Caminhar a trilha traçada por Deus, às vezes implica em renúncias e ausências que muitos não podem compreender, nem acompanhar, mas que estabelecem, tal como para Neemias, a diferença entre viver ou morrer, construir ou deixar perecer a construção.

Você Marca Presença

O cântico de exaltação ao amor, composto por Salomão, dedicado a uma sua eleita, e que em nossas bíblias tem por título Cântico dos Cânticos ou Cantares, usa abundantemente de metáforas e hipérboles cujo efeito é exaltação calcada na admiração.

Uma dessas metáforas, de uma riqueza de imagem linguística cujo paralelo só a própria pena de Salomão oferece, se encontra em 6:4 do livro, onde nossos tradutores se esforçaram para transmitir a idéia mais precisa daquilo que o autor sacro quis comunicar. Ali, Salomão teria dito que sua amada é “formidável como um exército com bandeiras”, ou seja, que impressiona em sua marcha. Mas usou um adjetivo que pede mais que “formidável” em sua comunicação, onde bem podem caber “terrível”, “temível”, “impressionante”, “assustador”, etc, todos esses adjetivos tendo como sentido comum classificar o objeto como algo que marca presença, que chama a atenção, mas evidentemente de forma atraente, positiva, como bem reforça o contexto.

Há aqueles que se debruçam sobre o texto de Cantares e procuram ver nele uma alegoria do amor de Cristo pela Igreja. Espiritualizações textuais à parte, é certo que o espírito do evangelho de Cristo investe em nossa vida visando uma transformação de tal quilate, que atenda minimamente ao significado de “Cristo em vós, esperança da glória” (Colossenses 1:27) ou, “…assim resplandeça a luz de vocês diante dos homens, para que vejam suas boas obras e dêem glória ao seu Pai que está nos céus” (Mateus 5:16). Nesta direção, acredito que qualquer de nós poderá deixar a marca que imprime a imagem de um exército com bandeiras, de forma que seus observadores possam exclamar: formidável!

Mas você percebeu o que eu disse a respeito dos tradutores do texto em questão? Que eles decidiram traduzir a palavra hebraica “ Aimah” por formidável, em lugar de aterrador ou terrível, devido ao contexto que lhes determina se decidirem na direção desse significado? O contexto dita o sentido que se imprime.

Assim é nossa vida de testemunho cristão, nesta geração, quanto aos nossos observadores. A depender de como a vivemos, poderá produzir admiração como um exército em marcha, embandeirado num desfile que anuncia presença e segurança; ou aterrador, se esse exército marchar como um corpo de guerra, ameaçador, invasor. Nessa condição sua visão será aterradora. Especialmente se em lugar de bandeiras tal exército empunhar armas.

Desejo, sinceramente, que você viva nesta geração, preparando-se conscientemente para que quantos consigo tratem, possam ver em sua vida a glória do Cristo de quem você é aprendiz, de tal forma que possam exclamar admirados, tal como o noivo em Cantares: Formidável! E isso enquanto você marcha pela existência, com bandeiras nas mãos.

Grumixamas

Quando eu era menino, havia no pomar da casa de meus pais um pé de grumixama que era minha maior alegria. Quem leu “Faça-se Luz!” pode conferir.

Cresci e nunca mais vi minha árvore de frutinhas deliciosas. Cheguei a ver dois outros, grandes, em lugares diferentes na vida adulta, numa fazenda e num sítio, mas fora da época de frutificação, e então isso serviu apenas para fustigar a saudade. Até o aroma das frutinhas eu restaurava na memória.

Há dez anos um homem passou em Analândia me oferecendo uma muda. Comprei, plantei, e há três anos tenho minha alegria renovada. 

Hoje minha grumixameira tem cinco metros de altura. Eu a podei no devido tempo e adubei com cinzas de meu fogão à lenha (“Meu amigo tinha uma vinha na encosta de uma fértil colina.Ele cavou a terra, tirou as pedras e plantou as melhores videiras…” – Isaías). Em todo mês de novembro ela floresce e depois transborda de frutos, sempre em novembro (“É como árvore plantada à beira de águas correntes: Dá fruto no tempo certo…” – Salmos 1 ). Como ela cresceu, este ano transbordou de frutos como nunca antes (E dá fruto a cem por um… – Lucas). As partes mais altas são para deleite dos passarinhos: sanhaços, sabiás, bentevis, pardais e há poucos dias até um enorme tucano. As partes baixas são nossas. Ela projeta bela sombra (“…cresceu e se tornou uma árvore, e as aves do céu fizeram ninhos em seus ramos” -Lucas). 

Nada se compara ao prazer de aguardar ano a ano o mês de novembro, ajustar a agenda para estar em Analândia na segunda quinzena, me aproximar da árvore da minha infância e me deleitar com seus frutos! (“Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dará muito fruto”- João). 

Hoje, junto à minha grumixameira, orei agradecido por tão singular resgate de um doce deleite infantil, e pensei em meu coração quão grande deve ser o desejo do Pai Celeste em encontrar meus frutos por Ele pretendidos e buscados periódicamente, durante as estações de minha história de vida e na vida. 

VOCÊS NÃO ME ESCOLHERAM, MAS EU OS ESCOLHI PARA IREM E DAREM FRUTO, FRUTO QUE PERMANEÇA… – João 15:16.